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Pensar a psicanálise no território: algumas reflexões

Uma das questões que incidem fortemente no trabalho direto no território hoje é o tráfico de drogas e o crime organizado como um todo. Quanto ao domínio do território pelo tráfico, no caso de São Paulo mais especificamente o Primeiro Comando da Capital (PCC), este é exatamente proporcional à ausência do Estado. Quanto menor a presença deste, maior a influência do PCC. Como dizer a um adolescente que o estudo em uma escola –  frequentemente incapaz de representar um conhecimento que permita a operação em seu mundo – e que o trabalho com parco salário são melhores do que o tráfico de drogas, a venda de produtos ilegais, ou o roubo?

É importante ressaltar que essas atividades ilícitas não trazem somente um maior ganho em dinheiro. Trazem o que um adolescente mais quer: a adrenalina e a saída da invisibilidade. O tráfico tem regras rígidas, reconhece um trabalho bem feito e o saber dos adolescentes, até oferecendo um plano de carreira. Permite o acesso aos produtos emblemáticos da globalização como marcas de grife, armas e dinheiro na mão, que significam o acesso a sexualidade, ao status e ao respeito dos pares, além de capturarem o jovem no imaginário da potência. Na verdade, o tráfico de drogas é, talvez, a empresa que gera maior mais-valia no mundo contemporâneo, com regras mais rígidas e punições mais severas, entre as quais tortura e morte.

         Essa modalidade de vida, que sustenta o mercado do ilícito, significa importantes ganhos financeiros para os grupos que dominam tais atividades. Estes no dizer de Feltran[1] (2008), são conscientes da importância dos valores éticos e estéticos e se lançam com grande eficácia a uma disputa pela hegemonia cultural no território, como podemos observar nos costumes e gíria que fazem apologia do tráfico. Essas atividades estão fortemente arraigadas no território e abarcam cada vez mais espaços, levando aos habitantes o trânsito pela porosidade entre o tráfico e o ilícito.

         É cada vez mais comum nas periferias das cidades o estabelecimento, pelo tráfico de drogas, de tribunais informais (os chamados debates), onde os “juízes” são os membros do PCC. Há inclusive a possibilidade de “recurso” dos julgamentos em alguns casos. O “tribunal” superior geralmente opera de dentro das prisões. Na ausência de um Poder de Estado que regule as relações dentro do território é essa “justiça” que, muitas vezes, a população desamparada recorre como única e última alternativa contra o abuso e a violência. São os debates e a lei do tráfico que muitas vezes fazem com que caia o índice de violência no território, para os negócios não sejam prejudicados pela ação da polícia e para a obtenção do apoio da população. Essa “ordem” vai constituindo regras de convivência e obtendo, junto com o trabalho cultural (música, roupas, gestos, gírias), o aval da população em função de ser a única força organizada presente no território. Cada vez mais, os “irmãos” são chamados para resolver conflitos familiares, de vizinhança, segurança e etc. O “Dia das Crianças” e outras festas passam a ser organizados pelos “irmãos”  com brinquedos, churrascos e música para todas a comunidade.

         Freud nos apresenta em “Totem e tabu”[2] (1913), “Psicologia das massas e análise do ego”[3] (1921)  e  “O mal-estar na civilização”[4] (1930), entre outros, que no início da humanidade, na horda primitiva, o pai poderoso possuía o monopólio do gozo. A surge quando os irmão quebram esse modelo social, matam o pai e fazem um acordo entre si. Nenhum deles poderá ocupar o lugar do pai. É isso que gera um código e uma ética permitindo a mútua convivência. Com isso, são necessárias várias renúncias pressupondo uma organização social que, nos termo atuais, seria a Lei e o Estado. São exatamente essas renúncias em nome do coletivo que causam o mal-estar social na civilização e que estão o tempo todo presentes enquanto sintomas e ambiguidades nos vínculos e nas relações sociais.

         A violência sem limite no território fragmentado da periferia tem como uma das consequências a manutenção do sujeito em alerta máximo. Nos territórios da exclusão, as relações pautadas pelo medo e pelo desamparo conduzirão os vínculos familiares. A vida dos jovens no território torna-se uma corrida de obstáculos. Eles passam por várias situações-limites, mas a qualquer momento podem tropeçar no obstáculo e cair. Os acontecimentos destrutivos podem ocorrer a qualquer instante. Um conflito, a polícia, uma infração legal, um boato, pode derrubar esses adolescentes. A corrida de obstáculos faz com que ele nunca saiba quando e como cairá diante da irrupção daquilo que é familiar e desconhecido, que pode surgir de uma forma surpreendente e destrutiva. É a constante presença do sinistro, o Unheimlich, como nos coloca Freud (1919)[5]. Assim, o medo e o desamparo dominam a cena da periferia. Quanto maior a pressão, maiores são o esgotamento psíquico e a dificuldade do pensamento e da construção de um projeto de vida.

         Como já dissemos em situação anterior (Broide, 2008[6]), esse processo gera uma forte tendência à supressão da palavra. Isso ocorre em função da ausência de redes sociais e familiares, o que implica a quebra da cadeia simbólica. No caso da periferia, essas redes não foram construídas, ou, então, foram destruídas pela violência dos fatos que excedem a capacidade de processamento do aparelho psíquico. Tais fatos funcionam como raios geradores de curtos-cuircuitos, queimam os caminhos internos e transformam-se em compulsão a repetição. A queda do pai na corrida de obstáculos pode dar-se pelo desemprego etc. A mãe, que conhece muito bem o território em que vive, também sempre está em sobressaltos, atenta se os filhos estão entrando em alguma situação de ilegalidade e violência, ou, então, derrotada, expõe os filhos a essas condições, como medida de sobrevivência, passa a trafegar nas diferentes esferas do lícito e do ilícito. As relações familiares vão ficando cada vez mais duras e tensas e tendem a ruptura. Na verdade, elas expressam o território, sendo permeadas por suas características.

         Nas condições de grande pressão social, como a que ocorre nas periferias, é difícil a criança encontrar quem a ame, quem, ao mesmo tempo, ela respeite, e cujo amor tema perder. Por outro lado, aquele que se propõe à função paterna deve realizar um extraordinário esforço para exercê-la diante de tantas dificuldades concretas. O que surge como alternativa à queda do pai e das instituições é o traficante, o delinquente com sua força aparente, ou as igrejas messiânicas que prometem alívio imediato da dor e do desamparo. São esses grupos que crescem nas periferias de maneira assustadora e lideram , de forma perversa, o território. Possuem uma clara estrutura vertical de horda primitiva. O poder do chefe não tem limites na violência e na sexualidade. Este passa a fazer parte do modelo identificatório que é introjetado pela criança e pelo jovem. Muitas vezes, o conflito interno nesses jovens entre as figuras identificatórias familiares e instituições não tem força suficiente diante desse homem poderoso do crime organizado que oferece vida (e a morte) fácil. O jovem submetido à pressão social circula entre esses dois modelos e a porosidade entre esses dois mundos que agora gera a combinatória desses processos em seu inconsciente.

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[1] FELTRAN, Gabriel de Santis. O legítimo em disputa: as fronteiras do “mundo do crime” nas periferias de São Paulo. Dilemas. Revista de Estudos de Conflito e Controle Social. v. 1, n. 1, p. 93-126, Rio de Janeiro: UFRJ. 2008.

[2] FREUD, S. (1913) – Totem y tabu. Algunas concordancias en la vida anímica de los salvages e de los neuróticos. Obras Completas. Vol. XIII. Buenos Aires: Amorrortu editores,1985. V. XVII.

[3] FREUD, S. (1915)  – Psicología de las masas y análisis del yo. En Obras Completas. Buenos Aires, Amorrortu Editores. 1985. V. XIV.

[4] FREUD, S. (1930) – El malestar en la cultura. Obras Completas. Vol. XXI. Buenos Aires: Amorrortu editores, 1985. V. XXI.

[5] Freud, S. (1919). Lo ominoso. Obras Completas. Vol. XXI. Buenos Aires: Amorrortu editores, 1985. V. XVII.

[6] BROIDE, J. A rua enquanto instituição das populações marginalizadas: uma abordagem psicanalítica através de grupo operativo. Dissertação (Mestrado). Pontifícia Universidade Católica, 1993.

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